Seco dia molhado
Cansei das mesmas violas, e falo comigo mesmo outra vez. A impertinência diária da terra abarrotada, ainda que choveu não passa de minutos, vejo antecipado a secura de tudo, essas flores que vejo. E não vieram por enquanto. A relva dura, as formas pudicas, uma contenção de lágrimas.
Podia pensar em outro arranjo, deixar o tormento de imaginar. E a música que repete em algum desvario, a fala cantada dessa gente miúda que voa. E mais porque penso nas certezas do incerto, tomo-me e levo-me à cozinha, lugar de poucos riscos, achatados barulhos. Ter um aparador ali, que pudesse alcançar e ler as receitas poéticas de algum amável desconhecido, os desvarios de um pedaço de queijo e uma taça de vinho de Epicuro.
Abriria páginas dormidas de Quincey e cairia sonolento. E logo a dispor-me ao trabalho fatigante que a fome alegra preparo todas as preparações para enfim, enfileirar ao banho de vinagre cortes densos de queijo, enfiar os perfumes de temperos em uma terrina, que a mim faz lembrar as de barbeiros, bater ou surrar ovos, sumo de limões verdes despejados no azeite de oliva, batidos até desmanchar a lataria, e as salsas a dançar com manjericões molhados do tempo, e, claro, orégano.
Cozer na quentura da manteiga os pães fatiados, enquanto o café caminha pela casa. As azeitonas tremem no calor da frigideira, os queijos se esparramam, como narrativa de futebol, caem os ovos até se juntarem ao sal a gosto que, por fim recebem as franjas da meta, do gol. E se posso dizer assim, movo todo o arranjo de um lado a outro até que o uníssono do uniforme democrático dessa ordem estabeleça o momento, e seja repartido em partes nem exatas e nem definidas, apago o fogo. Volto à leitura.
Sirvo-me de uma xícara de café. Levo os temperos, envolvo às formas. E a preguiça opiaria de Álvaro de Campos, por incrível, desperta-me. Entremeios à leitura interesso-me com o que podia ter florido com serenidade o jardim. E em sua simplicidade, a evocar as sensações, os prazeres do bem, a bebida fumegante e o alimento da felicidade. Agora chove.
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