A espera que logo vai à mesa

 






   As hortaliças podem esperar, estão no cercado em um fundo do quintal e no jardim pequeno da frente caindo ao acaso pelas cercas, o tempo de amadurecimento, não se revela em sua prontidão de continua renovação entre chuva, vento, sol, e o que ainda dorme possui a expectativa de despertar, retornar ao seu momento, algo presente e quieto, ardente como uma vida que se dispõe à viver, e por isso o corte das folhas, a colheita, o fruto da terra entregue em si mesmo definitivo e desperdiçado.

        Todo de si entregue em ser cuidados com a forma,  o ambiente e toda a atmosfera que o cultivar, essa relação que a força faz produzir a delicadeza, e o contato em diálogos silenciosos de agricultor, acompanha a florescência mesmo quando apenas provê o tempo, jardineiro das estações, e do gesto que impõe alguma técnica, amador de amar o viver, convive com os traços de um constante aprender que depõe no cesto todo intrincado por amarras velozes que lhe deram forma, o vime, taquara, a pele orgânica desgastada no banho de cada folha, no abandono em um terrina pesada de cerâmica, a voz da terra imaculada, para deitar-se à mesa e alimentar o mesmo chão por onde morrem felizes suas últimas palavras, e alimenta, como lembrança, memória sentida do que foi e que se apresenta.

        A espera cotidiana, sabendo dos esforços de cada brotar; contornada por intensificações do tempo, devorada tantas vezes por bandos de insetos, acalentada por minerais, raízes da durabilidade, entregue ao aparente imóvel da persistência, em tudo que age ao redor. E as pequenas relações das folhagens do jardim, esporos de flores distantes que chegam, e a revoada de pássaros de passagem, em que tudo estanque é móvel, estrangeiro como um som distante de falas abandonadas em um calçada, e os barulhos das coisas feitas, a certeza absoluta dos conceitos rebatidos, as verdades que balançam seus estames sem encontrar paz, este verdor que esconde o vermelho secundário, as sombras e os dourados das claridades.

        É menos bom o peso das letras que o garrancho enigmático dos desenhos, o eco das liturgias que seu significado, o canto desafinado e a subida do campo dos sentidos. As bordas onde ficam os buchos, o amontoado de tostões gritantes, a vinha florida de oleoso vermelho, o amarelo da última flor de ipê, e a ternura esquelética quase fria do jacarandá mimoso, e depois o espírito-santo inventando o fim de inverno, a cabeleira despenteada de samambaias, as gorduchas eriçando pedúnculos ridículos de uma magreza triste,  a serrana, a árvore do descanso, o taquaral, e toda a permissão pedida à pimenta-de-cheiro, toda envolvida em ser imensa e dura aroeira, de grimpas avoadas que se metem na relva caindo de galhos centenários.

        Esse remoinho de coisas paradas, esse estático silencio de horas que os minutos comem à mesa de letras dormidas em almofadas de dentes-de-leão, pequenas flores amarelas em meio aos almeirões da terra, serralhas e tufos incandescentes de mimosas e trevos, apaziguados por tanchagem entre excessos de capim-agulha, e as caras duras de rochas descansadas. E mesmo  antes da despedida do fim-de-tarde, antes que os pardais portugueses venham e o tico-tico lamente, antes e ante a tudo aparece outra vez uma lua que não desse mundo banhando-se em um mar púrpura tendo o azul de ametista e turmalina, e aquela ponta de diamante que lembra tanto citrino aparece estrela da tarde.

        Enfim canta, diz palavras convexas o sabiá, os guachos vão cuidar dos ninhos pendurados, quase um pio, se escondem. Logo  o manto bordado é levado por edredons frios de nuvens que correm a cama da serra. Aquieta a noite, e outra vez a espera, a vaia triste do vento, a luminosidade das raivas no céu, o úmido vapor, o turbilhão violento das tempestades.

        O fogão à lenha não aquece a urbanidade obediente ao puritanismo em marcha da televisão, as coisas feitas sem jasmim à janela, sem hortaliças no prato do óbvio. Um mal estar de palavras não alcançadas, simbolismo de coqueiros rasgados, metáforas afogadas às coisas feitas, aos embrulhos publicitários, certo desgosto e desentendimento, e a rosa corre fora para enfeitar a rua nua, e alguém pisa na estrelinha, corta os vendeiros, quebra o manacá e leva para um vaso de plástico.

        Os sons perdem a cadência, e o descaso come a comida velha no belo restaurante onde é permitido gritar as pobres riquezas numa língua desconhecida de verbos mal entendidos que fazem a carne suja. Quando amanhece, quando os incineradores estão a todo carvão, e à maneira dos queimadores o dia se incendeia, e se transpira sem movimento, o calor faz dormir os sentidos, ficam à baila de uma aragem que levantam o amor-perfeito, e novamente se espera ao menos os cachos do gengibre-azul, que mude o tempo como muda de são-joãozinho saltando para a vizinhança que a esmaga, corta. E permanece na espera a luz da primavera molhada, derretida no frio da metáfora.

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Charlie 


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